A Última Aventura Humana sobre a Terra “Zarathustra” de Nietzsche

A Última Aventura Humana sobre a Terra

"A fidelidade à Terra", de que nos fala o “Zarathustra” de Nietzsche, logo no princípio de sua “pregação”, pode ser entendida como uma fidelidade ao mundano (weltlich), terreno (irdisch), à essa vida cá em baixo (diesseits), pois é o que nos resta quando não temos mais fé no além (Jenseits), no mundo além (überweltlich), ultra-terreno (überirdisch), seja aquele platônico, das idéias, da filosofia, seja aquele cristão, das virtudes, da religião. Acabam-se, assim, ilusões como a da verdade e de uma divindade, ficando só o ser humano. A rigor, não há “ser” humano, mas apenas “sendo” humano. E nesse vir a ser, pode-se ser tanto no modo da super-ação, como também da retro-ação, jamais da in-ação. Para escapar ao abismo do nada que então se revela, dentro dele e ao seu redor, no mundo ao redor e em seu interior, o ser humano cria, voluntariamente, uma ilusão e se projeta sobre esse abismo, lança-se qual uma flecha puxando uma corda na direção do horizonte, para permitir a outros atravessarem o abismo, caso ele - ou ela - venha a atingir o seu destino, dando-lhes um sentido (Sinn), a superação (Überwindung) de si pela realização de si, pelo tornar-se (werden) o que se é: o super-homem (Übermensch), o único além (über) desejável, possível. Eis o sentido da vida na terra, o sentido da terra: tornar-se o que não é, mais do que é, para ser o que já foi. Incan-descer. Não somos pó e ao pó retornaremos, por sermos da terra. Não somos de terra, somos do fogo, pois enquanto organismos, somos combustão, combustível, de origem solar, e ao fogo retornaremos, quando apagarmos, até que também se apague a nossa estrela, e depois se faça novamente a escuridão e da escuridão, tal como antes, novamente se faça a luz, e novamente nos dêem a luz, o mesmo eternamente retornando... Então, se é assim, por que a pressa? Seria o caso de tentar prolongar essa estadia sobre a terra, aceitando-a mesmo que precária, limitada, tão limitada, e ainda assim tão diversa. Por que não diversificá-la ainda mais? Atualmente, no entanto, agimos individual e coletivamente de uma forma que nos está conduzindo antes a abreviar do que a prolongar essa nossa experiência de vida sobre a Terra - e isso tanto no plano individual, como coletivo, mundial.A fidelidade à Terra e à vida que se tem sobre (über) ela vem nos cobrando, exigindo, reclamando a preservação delas, que é a nossa também, quer dizer, uma proteção contra nós mesmos, os humanos, cada vez menos “super”, e, portanto, cada vez mais “sub”, já que o demasiado humano é desumano. O desencantamento da razão - cf., sobre o que segue neste parágrafo, a “Dialética do Esclarecimento” de Horkheimer e Adorno (v. o “fragmento” da parte final, denominado “Para uma Crítica da Filosofia da História”), bem como a “Dialética Negativa”, deste último, especialmente suas últimas páginas - a revelou como negativa, um “acidente” da natureza, que gerou essa espécie que somos, portadores dessa arma-mãe, o logos, com a qual, enquanto espécie, nos tornamos imbatíveis por qualquer outra, exterminamos as concorrentes mais próximas - como também várias outras, não tão próximas, por efeito colateral -, e impedimos o aparecimento de alguma outra, mais “evoluída”: barramos a “evolução” natural. O “super-homem”, portanto, não será uma nova espécie natural, um produto da natureza, como ainda foi o homem, ou seja, uma espécie natural mais evoluída que este último: isso é impossível. O super-homem será, se o for, um produto do próprio homem, que, voltando-se para si, superar-se-á, por um retorno à natureza, ao natural, que nele habita, enquanto sua origem - “fidelidade à (mãe-pátria-) terra”: será ainda possível? O que ainda haverá de natural em nós, do que não nos distanciamos o suficiente para ainda nos reconhecermos ali? Trata-se de (re)encontrar conscientemente o que tanto ansiamos inconscientemente, o “retorno ao orgânico”, antes que ao inorgânico, como atesta a invenção freudiana da pulsão de morte. O super-homem, então, pode ser aquele entre nós, humanos, que se mostra capaz de vivenciar a própria morte ainda enquanto vivo, enquanto homem, homem que já “matou” qualquer além-do-homem que não seja humano, natural, seja Deus, a Verdade, ou qualquer manifestação sobre (über)-natural. Que experiência é esta? Podemos denominá-la “a última aventura”, a última aventura humana sobre a Terra, nossa maior experiência, a que nos justifica a vida propriamente humana, donde ser o super-homem o sentido da vida do homem sobre a Terra - o “sentido da Terra”, portanto, que se encarna no homem. Esta experiência aventurosa, que se nos afigura a mais venturosa, só pode ser vivida individualmente. Considerando um relato dos que a teriam vivido, enquanto experiência mística, ela pressupõe a consciência da individualidade, para dela prescindir, pois consiste em uma experiência de dissolução dessa individualidade, numa espécie de “fusão cósmica” do consciente no inconsciente, para expressarmos a idéia em termos psicanalíticos, evitando, assim, o descrédito ocasionado pela conhecida análise freudiana do sentimento místico. Do que se trata, portanto, é de nos tornarmos, o quanto possível, conscientes do inconsciente, sendo nesse sentido que se compreenderia o imperativo categórico psicanalítico: wo Es war, soll Ich werden (“onde era o Isso - id -, o Eu - ego - deve advir”). Isso porque só no inconsciente é que somos, propriamente, enquanto o consciente é um constante “sendo”, sempre “advindo”. Daí se poder afirmar, por exemplo, que Deus é o inconsciente, caso Ele seja definido como o Ser, o “sou o que sou” do livro bíblico do Êxodo - v., para um  maior desenvolvimento dessa “metafísica do Êxodo” (É. Gilson), o trabalho que publicamos no Festschrift Manfredo Araújo de Oliveira.Haverá ainda tempo e lugar para esta “última aventura humana sobre a Terra”, ou a “doença de pele” que a acomete, como Nietzsche certa feita se referiu à humanidade, tornou-se cancerosa e poderá ser-lhe fatal? A busca de conservação a todo custo, o medo de enfrentar a única certeza que temos, a de que a qualquer momento poderemos deixar de viver, de “ser”, encoraja o homem a fazer tudo o que lhe é possibilitado, pelo uso da razão, para evitar a morte, e com isso termina agindo contra a própria vida, que, afinal, é o agente da morte: não há vida sem morte. Aterrorizado por esta única possibilidade de que tem certeza da ocorrência, o ser humano não explora devidamente todas as outras possibilidades que se lhe oferece a vida nessa terra, pensando antes em evitar o momento da dor do que em aproveitar uma eternidade em júbilo após aquele momento, pois à dor segue-se o prazer e a este novamente a dor, indefinidamente, como canta o caminhante noturno (Nachtwandler) no final do Zarathustra.É diante de Deus, de um ente superior, criado pelo homem para lhe dar a ilusão de segurança, a garantia de permanência, em um mundo contingente e cambiante, que se postula a igual inferioridade dos homens, sua igualdade. Como assinala Nietzsche no capítulo denominado “Dos homens superiores” (Vom höheren Menschen) de seu “Zarathustra”, esse Deus é a maior ameaça ao super-homem, o maior empecilho à superação do homem, donde a morte de ambos, Deus e o homem, se fazer necessária, para que viva o ser humano sem o sobrenatural, fiel à Terra, à (sua) natureza. A Terra, no entanto, vem sendo arrasada por aquele “mais feio dos homens” (der hässlichste Mensch) que aparece na parte IV do “Zarathustra”, o assassino de Deus, que a tudo e a todos despreza, inclusive a si mesmo, matando Deus para que não testemunhasse seus mal-feitos, sendo este mesmo homem que, no antepenúltimo capítulo desta última parte do livro, ressuscitará Deus, não se importando mais com o seu julgamento nem com o ingresso no reino dos céus ou a vida eterna. O reino que interessa é o da Terra, a vida terrena e efêmera, incerta, mas sempre possível de retornar, a cada dia em que se desperta, até não haver mais despertar nem dia, restando ainda a possibilidade do retorno infinito do absoluto infinito, única eternidade que se nos oferece o pensamento nietzscheano, por ser a que ainda resta aos que não esperam mais nada além do que já têm.No penúltimo capítulo do “Zarathustra”, o “homem horroso” (der hässlichste Mensch) - o próprio Nietzsche? -, assim como os demais a seu redor, “homens superiores”, experimentam a vivência do eterno retorno, tornam-se super-homens, superam-se enquanto humanos, tornando-se o que são, imortais, pois a morte, de fim da vida, torna-se condição para o seu recomeço, assim como o começo também o foi. Na verdade, não haveria fim nem começo em um universo eterno, mas tão-somente acontecimentos que, do mesmo modo como se sucedem, também um dia se repetem, em um mesmo encadeamento: o que já aconteceu, portanto, acontecerá novamente, para que, de algum modo, seja sempre o que já foi, pois só pode ser eternamente o que é - e há o ser, como sabemos os que somos conscientes. A idéia do eterno retorno do mesmo apresenta-se, assim, como uma ficção necessária para se conceber a vida sub specie eternitatis, a fim de não banalizá-la, mas também sem recorrer a algum forma de transcendência, ou seja, mantendo uma concepção de pura imanência. É aí que se abre uma possibilidade para os humanos de viverem sem aterrorizarem-se com a sua condição de permanente transformação, até a transformação final, que a qualquer momento poderia se dar. Assim, poderão organizar sua vida de acordo com essa ficção do eterno retorno, ao invés de qualquer outra - e alguma sempre terão, pois não há acesso possível a uma realidade última, para além da linguagem e do pensamento, podendo mesmo se afirmar que, mesmo se houvesse esse acesso, não haveria um retorno possível, sendo a experiência insuportável ou inenarrável, como atesta o sem-sentido da loucura e o inefável do místico. Passa-se, então, a viver “como se” já se tivesse vivido o que se vive e querendo viver o mesmo de novo e eternamente. A vida torna-se um fim em si mesmo,  deixando-se de conceber esta vida como um meio para acesso a alguma outra, melhor, no além, ou em algum futuro indefinido - no primeiro caso, a vida é desvalorizada, enquanto no segundo, ela é super-valorizada, levando a que se aja contra a vida, seja por não se importar com ela, seja para evitar a morte a qualquer custo, já que poderá não haver mais nada além dessa única vida.            A última aventura humana sobre a Terra, então, apresenta-se como a última porque nos exigirá mais do que vivenciar a própria morte, individualmente, mas também a possibilidade de sua ocorrência no plano coletivo, presenciando, eventualmente, a destruição da humanidade e, até, da própria Terra. Essa destruição está em curso, sendo obra dos que vivem apenas - ou demasiado - humanamente, de acordo com uma má ficção, seja aquela de que há uma vida melhor no além, seja uma outra, que se apresenta como moderna, segundo a qual a vida melhor nos será proporcionada pela exploração econômico-científica da Terra e de seus habitantes, quando aí reside um perigo ainda maior para o homem do que a crença na onipotência divina, pois é a crença na onipotência humana. Eis que a última aventura humana sobre a Terra será a última, se encerrar a aventura humana na Terra e, até, acabar com a própria Terra. E também será a última se a humanidade conseguir salvar-se e salvar a Terra, permanecendo fiel a ela, quando então terá se superado, enquanto forma de vida, superando o misto de terror e arrogância que a constitui. Uma melhor compreensão do que aqui se pretende expor pode ser alcançada se voltarmos nossa atenção para o capítulo sobre a ciência (Von der Wissenschaft), também da citada IV parte do “Zarathustra”, encerrando o presente ensaio.A paixão pela ciência, como Nietzsche escreve em “Aurora” (Morgenröthe, aforisma 429), nos dá uma coragem para ir até as últimas conseqüências, em busca do conhecimento, e, de todo modo, para ele, seria preferível que a humanidade perecesse, como resultado do avanço da ciência, do que tolerar um retrocessso do conhecimento, uma volta da barbárie. No capítulo intitulado “Da Ciência”, no “Zarathustra”, o “mago” (Zauberer) acabará de cantar seu desencanto com a busca da verdade, quando foi bruscamente interrompido por um espírito “consciencioso” (Gewissenhafte), reprovando-o por desprezar a verdade, ao que retruca o “mago”, reprovando-o por “quebrar o encanto” da música, sem tê-la compreendido. O “consciencioso” homem de ciência, dando-se conta da oposição entre ele e o “mago”, mostra sua perplexidade em notar que, por serem tão diferentes, era de se concluir que, assim como ele estava em busca de segurança, o “mago” e os demais só poderiam estar em busca do contrário, do risco, da aventura. O “consciensioso”, então, louva o medo como a origem de toda virtude e de todo pecado, sendo a partir dele que desenvolveu sua virtude, a ciência, uma manifestação refinada e espiritualizada daquele medo original, o medo dos animais selvagens – inclusive daquele que, segundo Zarathustra, teríamos em nosso interior. Ao ouvir isto, Zarathustra se insurge, afirmando exatamente o contrário, invertendo a verdade do “consciensioso”, ao considerar a coragem e o gosto pela aventura, pelo incerto, o que fez o homem vencer todos os animais e se apropriar de suas forças (virtudes, em sentido literal), tornando-se, assim, homem, sendo esta coragem que se teria refinado, espiritualizado, para tornar-se, nos dias em curso, o que terminamos sem saber o que é, pois antes que Zarathustra pronuncia-se o que seria essa nova aquisição, o seu discurso é interrompido pelos presentes, gritando seu nome e gargalhando em seguida -  o “consciensioso”, então, se revela um “mal-espírito” do “mago”, devidamente exorcizado.E o que seria essa nova forma de saber, surgida da coragem e do gosto pela aventura, pela experimentação (lembremos que a raiz etimológica dessa palavra é a mesma da palavra “perigo”)? Penso ser este o saber que nos quis transmitir Nietzsche com o seu “Zarathustra”, donde ter-se valido desse discurso tão inusual, fazendo um livro “para todos e ninguém”, em que se fundem filosofia, arte, religião e a própria ciência – especialmente aquelas mais recentes, como a psicanálise, com tantas afinidades com  pensamento nietzschiano -, dando origem ao que Wolfgang Müller-Lauter, no último capítulo de sua obra clássica sobre nosso autor, valendo-se de uma expressão dele mesmo, denominou “religião das religiões”. Trata-se de uma “religião” – ou “anti-religião” -, que ao contrário das demais, até hoje produzidas, não é o resultado do medo, do terror diante da realidade, da natureza, mas que a aceita, ao invés de negá-la, produzindo “um outro mundo”. Esta seria a “religião” que, ao invés de dar suporte a uma moralidade de fracos, baseada em inverdades, preservaria o sentimento de poder, próprio do fervor religioso, resultante, porém, de uma fé no saber, saber de si e do mundo, em sua unidade última indissolúvel, representada pela Terra, donde viemos e aonde retornaremos, sendo esta fé, portanto, fidelidade à Terra. Uma tal “profissão de fé” seria a última aventura humana sobre a Terra. 

Pode escrever aqui...

 

 

 

 
 
 
 

 

 

 

 

 
enviar por e-mail
Incêndio em prisão de Honduras deixa mais de 270 mortosPolícia investiga causas de fogo em penitenciária de Comayagua e autoridades temem que prisioneiros tenham conseguido fugir

Nova lista

Esta seção está vazia.

Notícias

Esta seção está vazia.