A RELIGIÃO EM NIETZSCHE - PARTE I

A RELIGIÃO EM NIETZSCHE - PARTE I

Objetivo do presente estudo é situar a religião no pensamento de Nietzsche. Embora, como é de um modo geral conhecido, nosso A. se oponha a qualquer manifestação que se apresente como transcendente, de um “mundo além”, bem como a toda forma de monoteismo, seria incorreto afirmar que ele, simplesmente, propõe o ateísmo como alternativa. Isso porque, para ele, a religião se mostra como parte essencial de toda cultura saudável, ou seja, daquelas do passado e, especialmente, da Antigüidade grega mais recuada, sendo exatamente uma tal saúde que se perdeu na Modernidade, e que ele espera possamos alcançar superando-a, reatando vínculos perdidos com uma tradição, mais do que apostando em um progresso para melhorar, no que teria um papel importante a desempenhar novos deuses, forjados de acordo com uma ordem natural - “o sentido da Terra”, como ele diversas vezes menciona em seu “Zarathustra” -, para atender aos anseios maiores de uma humanidade que se pretende, buscando-os, também superar, para que viva o “além do homem”. É para semelhante cura da cultura que seria necessário mobilizar a filosofia, pondo-a no comando da ciência, da política e também da religião.            A tão propalada “morte de Deus” é apresentada por Nietzsche como um evento terrível – após anunciá-la, Zarathustra se retira para a solidão do topo da montanha por dez anos -, mas graças ao qual se pode descobrir a vontade como um fato natural que em nós resulta na capacidade de produzir o sobrenatural enquanto ficção, novos deuses, ilusões que nos auxiliam a favorecer o engrandecimento da vida. Sim, porque para quem fora um (grande) filólogo, desistente dessa forma de teologia secularizada que é a filologia, convertido em poeta do pensamento, tendo percebido o mundo verdadeiro como uma fábula e a verdade como ficção, restou a prática de uma escrita criadora ou re-criadora do mundo, fazendo de sua obra o cenário em que se digladiavam as forças políticas e sociais de seu tempo, quando estava em gestação o nosso tempo, colaborando, desse modo, nessa gestação. É assim que para o autor da alentada obra “Nietzsche´s Corps/e”, o marxista althusseriano Geoff Waite,  norte-americano da Escola “culturalista” de Frederic Jameson, Nietzsche teria inoculado-se como um vírus na cultura ocidental e, logo, mundial, seguindo antiga receita grega, fornecida, entre outros, por um de seus autores prediletos, Píndaro, para obtenção da imortalidade pela sobrevivência do próprio pensamento nos pósteros, que continuariam falando de quem os pensou ou, principalmente, pensando, até sem o saber, o mesmo que antes já fora pensado pelo morto. Então, nos parece que o modo mais eficaz de se permanecer, dessa maneira, é pensando e escrevendo o impensável ou que até se pensa, mas não se tem coragem de dizer e, muito menos, escrever.             É certo que postular não ser Nietzsche um anti-religioso é um grande desafio, pois os sinais contrários são bem mais evidentes. Sua conhecida afirmação de que não há fatos morais mas apenas uma interpretação moral dos fatos (Para além do bem e do mal, §108) – e, além disso, de que não há fatos, só interpretações –, ou que haja o bem ou o mal em si mesmos, Deus ou o diabo (ib. §37), permite que se reivindique uma total liberdade em questões geralmente tuteladas pelas religiões. Ao mesmo tempo, sua denúncia veemente do ascetismo e do ressentimento contra a vida que ele implica, em nenhum momento aponta para o ateísmo como uma solução, embora seja esse ascetismo patrocinada por religiões – mas não só por elas, como demonstra o estoicismo. Daí vem o seu desprezo pelo cristianismo - mas não por Cristo, como demonstra o seu livro, cujo título, que além de não ter sido definitivamente dado por ele, mas apenas cogitado, entre outros, é mal-traduzido entre nós por “O Anticristo”, quando Cristo, em alemão, é  Christus, e Christ é que é o(a) “cristã(o)”, sendo este o verdadeiro alvo da obra, que inocenta Cristo (tido como um ingênuo, alguém que não sabia sequer o que estava dizendo, como o “videota” do livro de Jerzy Kozinski e do filme, interpretado magnificamente por Peter Sellers): o único cristão verdadeiro (que morrreu na cruz). Entretanto, se do que necessitamos, acima de tudo, é de novas ficções, é preciso que se tenha fé, crença nelas, sendo do que se trata quando uma nova filosofia é postulada – tal como se nova religião fosse.  Isso é o que teria feito Paulo, ao criar, propriamente, o cristianismo, como bem demonstra Nietzsche em diversas passagens de sua obra, publicada ou inédita, especialmente naquela totalmente dedicada ao tema, “O Anticristo”, o assunto é minuciosa e competentemente estudado pela pesquisadora argentina Laura Laiseca, mostrando “contra Nietzsche”, as distorções por ele praticadas na doutrina de São Paulo, o que não é de se estranhar, quando se está diante de um pensamento que desenvolve uma paródia caricatural, exagerando traços para produzir um retrato que, sem ser fidedigno, em seu exagero, enfatiza características, as  quais, de todo modo, se pode encontrar no original. É assim que Paulo, por sua conversão, vai aceitar e passar a  justificar o “escândalo” de Deus feito homem e morto como um reles escravo na cruz, transformando tal evento em um marco que divide a história da humanidade, e associando seu nome à “revelação” (apocalipse) e “divulgação” da “boa nova” (evangelios). Agora, aplicando a Nietzsche o seu próprio método genealógico e fisiológico, revelador das verdadeiras e ocultas intenções dos que propugnam tábuas de valores fixadas religiosamente, a partir da determinação de sua origem em impulsos ou, como em geral ele os denomina,  “instintos”, oriundos da vontade de poder, torna-se plausível, verossímil – e verossimilhança é o máximo que se pode almejar, aceitando-se o postulado epistemológico ficcionalista nietzschiano – caracterizar como religiosa esta pulsão fundamental em Nietzsche E isso, dentre outros motivos, pela tentativa de associar seu nome ao que seria um possível novo marco na história da humanidade, encerrada, conforme análises de autores da linhagem do cristianismo histórico, paulino, como Hegel, com o que nele já se apresenta como a morte de Deus, finalizando o período em que se vivia para o futuro, assim como antes do advento messiânico se vivia para o  passado, para iniciar-se o período em que se vive para e no eterno presente, pela experiência, de Nietzsche, do eterno retorno do mesmo. Para transmitir tal experiência, a qual teve, como é sabido, como uma iluminação, em Sils-Maria, nos Alpes suíços, Nietzsche escreve seu “Zaratustra”, “fala” através deste fundador de religião persa, ou seja, nem grego, nem judeu, e que seria, historicamente, o grande introdutor da associação entre moral e religião, ao vincular a separação que é própria do sagrado à distinção entre o que é bem do que é mal. A ele seria incumbida, então, na ficção – ou “tragédia” – nietzschiana, igualmente, a tarefa de superar tal dicotomia, interiorizada pelo cristianismo, a religião do Deus que se tornou humano, vindo a morrer em sacrifício pela salvação da humanidade, ou, na doutrina que se fez a respeito, daqueles que se reunissem pela crença na ressurreição de Deus feito humano, para assim também ressuscitar, uma forma extremamente engenhosa de, em um mesmo movimento, poder estender a bondade e a maldade a todo o gênero humano, ao contrário do que sempre se havia feito até então, onde bons são os membros da comunidade a que se pertence, e maus, os outros.  § 2o.             Desde seus escritos juvenis, Nietzsche demonstra sua preocupação central com o tema da religião e, especialmente, com aquela em que foi educado, o cristianismo. Assim, em “Fatum und Geschichte” (Fado e História), do princípio de 1862, ou seja, quando nosso A. estava ainda com 17 anos, vem mencionada, logo no início do texto, a necessidade de se buscar uma perspectiva imparcial e atualizada para estabelecer uma avaliação da religião e do cristianismo, reconhecendo, contudo, a dificuldade em superar preconceitos e hábitos desde há muito cultivados, o que requereria um longo tempo para a pesquisa e, mesmo, o amadurecimento do pesquisador, tendo em vista a necessidade de se confrontar com uma autoridade amparada por dois milênios de construções intelectuais das mais sofisticadas, donde uma tal tentativa ser anunciada como digna de um projeto para toda a vida – ao qual Nietzsche parece de fato ter se dedicado. Que nessa época Nietzsche já dispunha de intuições que serão desenvolvidas em sua filosofia posterior, demonstra uma passagem significativa deste texto, em que, após considerar a moral o resultado de um desenvolvimento universal da humanidade, “soma de todas as verdades para nosso mundo”, possivelmente sem nenhum outro significado no mundo eterno, do que ser este resultado de uma direção espiritual no nosso, ele pergunta “se a humanidade mesma não é apenas uma etapa, um período no todo, no devir, se não é uma manifestação arbitrária de Deus (sendo) o homem talvez apenas um animal  desenvolvido a partir da pedra por meio da planta”. E prossegue: “Teria aqui a perfeição sido atingida e não estaria envolvida aí também a história? Não terá nunca esse devir eterno um fim?” Em outro texto, um fragmento de abril do mesmo ano, intitulado “Über das Christenthum”, fica indicado o modo como Nietzsche pode ter chegado através do próprio cristianismo à sua concepção metafísica (e religiosa) imanentista, anti-transcendente, “terrena”, por voltada para a Terra – este ponto será aprofundado no próximo parágrafo -, quando escreve: “que  Deus tenha se tornado homem apenas aponta para o fato de que o homem não deve buscar na eternidade a sua espiritualidade, mas sim fundar sobre a terra o seu paraíso; a ilusão de um mundo ultraterreno trouxe para o espírito humano uma postura falsa em relação ao mundo terreno: esta foi a criação da infância dos povos”. Já em texto anterior, datado de março de 1861, precisamente sobre esse tema, da “Infância dos Povos” (loc. ult cit.: 26), Nietzsche defendia na associação literária “Germania”, que havia fundado um ano antes com amigos de Naumberg – os quais, sintomaticamente, o chamavam pelo apelido de “o Padreco” -, ser a tarefa da religião cristã contribuir para que se acelere o processo de amadurecimento espiritual dos povos, sem, contudo, patrocinar  uma intromissão violenta e a cisão no desenvolvimento religioso de povos pagãos, uma vez que o fundamento principal do cristianismo é o amor, a ser levado a todos os povos, o mais rápido possível, para conduzi-los “aos braços da única igreja verdadeiramente espiritual”. Já por volta do final de 1865 e princípio de 1866, percebe-se já a presença da revolta, tão característica em Nietzsche, contra a classe sacerdotal, no texto denominado “Pensamentos sobre a Cristandade”, antecedido por outro, de 1865, denominado “Sobre a Vida de Jesus”, em que se debruça sobre as diferenças entre as doutrinas dos diversos evangelistas, destacando aquelas entre João e Paulo, que serão suas principais referências em trabalhos que virá a publicar na forma de livros, especialmente o antes mencionado “Anticristo”. Em “Pensamentos sobre a Cristandade”, já aparece a crítica à associação necessária entre a moralidade e a fé no único Deus verdadeiro, o que considera um erro horrível, de que resulta “uma barbárie quase ridícula”, como é considerado o envio de missionários para a conversão “dos miseráveis pagãos”, como são tidos os povos não cristãos. Essa confusão entre os conceitos de moralidade e o que chama de teísmo torna-se uma perigosa faca de dois gumes nas mãos dos sacerdotes, que terminam se tornando, em parte, vítimas também dessa confusão, quando deixam de pensar por si mesmos para se porem a serviço da igreja, perdendo assim a capacidade de fundamentar a moral de outro modo que não pela crença. Daí vão ter de tentar atingir por meio de ameaças e recompensas, o que não conseguem através de uma fundamentação filosófica. Então, terminam buscando apoio na revelação que se encontra em um livro de origem “sobre-humana” – aqui chama atenção o emprego de adjetivo derivado do substantivo que depois será central no pensamento de Nietzsche, a saber, o “Übermensch”, o “além do homem”. Caso se duvide da validade da demonstração com base no texto sagrado, continua Nietzsche, ou se será desprezado enquanto descrente, ou se fará remissão a uma filosofia da religião, que sempre prova o que se queria demonstrar, ou então, para acabar a dúvida, se pedirá ajuda ao Estado cristão, como eram em geral os de sua época, no Ocidente. Em resumo, escreve Nietzsche, “os sacerdotes cristãos padecem do mesmo fanatismo que todas os sacerdotes do mundo”. Eles são um empecilho para o progresso, no campo da religião, pois sempre pregarão ser a sua própria a única correta e que se basta a si mesma.Isso porque, se não fora por eles e seus similares, como os ideólogos de todo gênero, se teria a transmutação para além do “humano, demasiado humano”, pelo cultivo em si de um sentimento divino, de, literalmente, entusiasmo, dionisíaco, pois dionisíaca é a divindade que brinca, qual uma criança, inocente como teria sido Adão, Jesus de Nazaré, o Buda maytrea (sorridente), a um só tempo destruidora e criativa, destruidora para ser criativa, como já Heráclito de Éfesos percebera, amando se ocultar com as máscaras da encenação teatral ou da comemoração carnavalesca, em que dança o “deus desconhecido”, encoberto, ausente, tragicamente morto, perdido, a retornar eternamente, eternamente a retornar, como D. Sebastião, na tradição nostálgico-messiânica luso-brasileira, deus absconditus, a quem Nietzsche dedicou os seguintes versos, aos dezenove anos: Ao Deus desconhecido. Mais uma vez antes que eu me lance adianteE envie meu olhar para frente,Levanto solitário minhas mãosEm tua direção, para quem eu fujo,A quem eu no mais profundo fundo do coraçãoReverencio festivamente em altares,Onde para sempreTua voz novamente me convocará. Ali queima de entusiasmo profundamente inscritaA palavra: ao Deus desconhecido.Seu eu sou, se na vermelhidão sacrílegaTambém até à última hora permaneci:Seu eu sou – e sinto o laço da armadilha,Que na luta me puxa para baixoE, mesmo que eu fujaAinda assim me forçará a servi-lo. No original: D e m  u n b e k a n n t e n  G o t t. Noch einmal eh ich weiter ziehe/ Und meine Blicke vowärts sende,/ Heb’ ich vereinsamt meine Hände/ Zu dir empor, zu dem ich fliehe,/ Dem ich in tiefster Herzenstiefe/ Altäre feierlich geweiht,/ Dass allezeit/ Mich deine Stimme wieder riefe.//  Darauf erglüht tiefeingeschrieben/ Das wort: dem unbekannten Gotte./ Sein bin ich, ob ich in der Frevler Rotte/ Auch bis zur Stunde bin geblieben:/ Sein bin ich – und ich fühl’ die Schlingen,/ Die mich im Kampf darniederziehn/ Und, mag ich fliehn,/ Mich doch zu seinem Dienste zwingen.// Ich will dich kennen, Unbekannter,/ Du tief in meine Seele Greifender,/ Mein Leben wie ein Sturm Durchschweifender,/ Du Unfassbarer, mir Verwandter!/ Ich will dich kennen, selbst dir dienen. 

 

 

 

 
 
 
 

 

 

 

 

 
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