A RELIGIÃO EM NIETZSCHE – PARTE II
A RELIGIÃO EM NIETZSCHE – PARTE II
§ 4º. Mais do que os indivíduos, os quais precisam se tornar conscientes de que são vontade de poder (criar, eu diria, e não, subjugar, retendo assim a expansão dela), quem precisa de fé e de um deus para ser o seu destinatário são os povos, podendo mesmo se dizer, dentro do espírito nietzscheano, com apoio em Heidegger - em Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), Gesamtausgabe, vol. 65, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1989, p. 405, passim. -, que são os deuses que criam os povos. como diria o pensador dinamarquês, em sua obra clássica sobre o conceito de angústia (Angst), a realidade, antes de tudo, é por nós experimentada - aperceptivamente, diria Kant ou pré-predicativamente, diria Husserl – como um possível ser, que se toma como real porque nele se crê. A crença no mundo, em um certo mundo, portanto, é um a priori para o conhecermos, e também para transformá-lo, o que não se pode obter sem antes - ainda que aperceptivamente -, interpretá-lo (ao contrário do que sugere Marx, em sua conhecida tese contra Feuerbach). Portanto, a transformação almejada, seja qual for, é resultado de uma prática orientada teoricamente, i. e., de um saber prático, sim, mas produtivo, logo, “poiético” -, e não de uma ação enquanto mera práxis ou de uma “téc(h)n[(ét)ica]”, reprodutiva. Um saber prático pode ser caracterizado como aquele que indica como algo pode ser feito, uma vez que se decidiu (ética, política e/ou juridicamente) fazê-lo, e como fazê-lo. A teologia foi considerada um tal saber prático por John Duns Scot (1266 – 1308) - cf., v.g., o “Prólogo” da Ordinatio, quinta (e última) Parte. Também como ele, pode-se defender que do Ser de Deus, o criador, ser-em-si, deve-se falar como do ser dos entes, as criaturas, em um sentido unívoco e não, por exemplo, como em Tomás de Aquino, em sentido análogo, tal como demonstrou seu sucessor na cátedra dominicana de Paris, o místico Mestre Eckhart, que também tanta influência teve em Heidegger, com sua afirmação da absoluta diferença (ontológica), estranheza, do Ser - logo, também de Deus, que é enquanto ser, e não enquanto ente, ainda que supremo, e maximamente superior, donde podermos dizer que Ele, ao contrário de nós, não e(ks)iste - cf. Martin Heidegger, Metafísica de Aristóteles IX, 1-3, trad.: E. P. Giachini, São Paulo: Vozes, 2007, p. 52 -, pois como já afirmavam os medievais, na esteira de Duns Scot, n’Ele coincidem a essência e a existência. Daí não ser nenhuma surpresa a afinidade heideggeriana de estudiosos do gnosticismo, como Henry Courbin, o primeiro tradutor de Heidegger na França, seu aluno Hans Jonas e, recentemente Peter Sloterdejk. Como para Heidegger, também para os gnósticos cristãos dos primeiros séculos (e de hoje, como os jessênicos), estando o homem “estranhado” de sua origem divina em um corpo e um mundo criados pelo demiurgo, divindade inferior e invejosa do Deus verdadeiro e supremo – note-se aí um outro traço heideggeriano, na concepção de uma pluralidade de deidades -, não procede a definição corrente de que se trata de um animal, ainda que racional. Isso mesmo que em Heidegger, como em um seu coetâneo com tantas afinidades, como o espanhol injustamente menosprezado Ortega y Gasset, não se suscite uma origem divina do humano, nem tampouco meramente natural, dada a distância do ser formador de mundo em relação ao que dele são desprovidos ou pobres – cf. Martin Heidegger, Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão, trad.: Marco Antônio Casanova, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, 2a. Parte, 2o. cap., §§ 43 ss., p. 204 ss.; Antonio Regalado García, El laberinto de la razón: Ortega y Heidegger, Madrid: Alianza, 1990, p. 288 ss. Ainda sobre o papel na elaboração do pensamento heideggeriano da estranheza-familiar, o Unheimlich, o qual Heidegger encontraria antes em Hölderlin que em Freud, v. Ernildo Stein, Introdução ao Pensamento de Martin Heidegger, Porto Alegre: Ithaca, 1966, p. 100 s. Do que se trata, então, é de dar ensejo a uma recuperação de um saber apto a fornecer uma orientação, ou re-orientação, na busca de sentido para as ações humanas, nas condições adversas da atualidade. Cabe a todos assumir uma parte de tal tarefa, de proporções gigantesca, percebendo o quanto é urgente e necessária e, se é assim, há de ser também possível dela nos desincumbirmos. O que se propôs foi uma mera indicação neste sentido, na esperança de pelo menos estimular outros a fazerem sua própria colaboração. Penso que assim teremos a possibilidade de invocar e, com isso, (re)criar o(s) Deus(es) protetor(es) da Cidade planetária, ameaçada e ameaçadora, a fim de nos salvar{[e(m]os)}. Como se pode ler no “Anticristo” (§16), “um povo que ainda crê em si cultiva o seu próprio Deus. N´Ele ele reverencia as condições que o permitiram prevalecer, suas virtudes: seus projetos, os seus prares em si mesmos, seus sentimentos de poder, em um ser a quem se pode dar graças... Sob tais condições, a religião é uma forma de agradecimento”. A saúde e crescimento de um povo estão ligados às suas crenças, pois os fortes têm fé, enquanto os fracos não têm nada. É certo que Nietsche não aceita qualquer religião, pois algumas, como é o caso típico do cristianismo, são indesejáveis, na medida em que justifica e glorifica a fraqueza. Neste ponto, novamente, é coincidente o parecer de Heidegger, quando prenuncia a necessidade de que se tenha um “último Deus”, mas que seja totalmente diferente de todos os que já houveram, e em especial, aquele cristão: “Der letzte Gott – der ganz Andere gegen die Gewesen, zumal gegen den christlichen”. Ib., p. 403. Ele viria a propiciar o que Heidegger chamou, em sua entrevista-testamento para Der Spiegel, de 23 de setembro de 1966, a disposição para que (nos) apareça um Deus que possa nos salvar ou, pelo menos, se revele em nossa decadência fatal e em Sua ausência com algum aceno (Wink) este último Deus. E com isso talvez aprendamos como deveríamos ter vivido, ainda que tardiamente, já à beira da extinção - a exemplo de Édipo (v. Édipo em Colon, in fine) e sua filha-irmã Antígona, que na morte encontram uma nova experiência da divindade, tal como Hölderlin propôs, a respeito desta última, interpretação que tanto impressionara a Heidegger. A conhecida passagem da entrevista citada, aqui parafraseada (e interpretada), é a seguinte: “Nur noch ein Gott kann uns retten. Die einzige Möglichkeit einer Rettung sehe ich darin, im Denken und im Dichten eine Betreitschaft vorzubereiten für die Erscheinung des Gottes oder die Abwesenheit des Gottes im Untergang; dass wir nicht, grob gesagt, `verrecken’, sondern wenn wir untergehen, im Angesichts des abwesende Gottes untergehen”. Importante para minha compreensão da passagem e outras que a ela se seguem, com ela correlatas, foi o trabalho de Otto Pöggeler, “Does the saving power also grow?”, in: Critical Heidegger, Christopher Macann (ed.), Londres/Nova York: Routledge, 1996, p. 206 ss., esp. 210 s. Digno de nota é ainda uma outra possibilidade de tradução, mais coloquial, para a frase “Nur noch ein Gott kann uns retten”: “Só mais um (novo) Deus pode nos dar salvamento (no sentido de prestar socorro)”. Antes do advento do cristianismo, para Nietzsche, os deuses representavam o que há de mais poderoso, agressivo e sedento por mais poder dos povos, quando então passou a ser meramente um Deus bonzinho. Neste sentido, pode-se dizer que o ataque de Nietzsche ao cristianismo se dá pela reivindicação de outra religião e outro deus, que melhor atendam aos reclamos da natureza e do povo, o qual precisaria de um tipo de líder como “um César romano com uma alma de Cristo”. A deficiência da cristandade, para Nietzsche, se torna de todo evidente quando ela é comparada com o Islam. Este último estaria certo em desprezar a primeira, pois, ao contrário dela, requer que se seja homem, macho, forte (O Anticristo”, A 59). Não por acaso ela nos suprimiu o melhor da cultura greco-romana, bem como da maravilhosa cultura moura na península ibérica, ainda mais próxima do que é requerido pelos nobres instintos masculinos do que aquela, tanto que era mais refinada em suas práticas luxuriosas (ib. 60). O problema com o islamismo, que leva a descartá-lo como a (mais) nova religião a nós necessária, é ser ele também um monoteismo voltado para o outro mundo. Melhor estaríamos, então, adotando alguma forma de gnosticismo, com seu Deus alheio ao que ocorre neste mundo, obra mal-feita de um demiurgo invejoso e suas hostes de degredados, pois as religiões que colocam seus deuses como infinitamente interessados (e, até, de certo modo, necessitados, o que é um absurdo) da prática de atos virtuosos pelos homens são reforçadas por aquela invenção dos filósofos (e teólogos) moralistas, o livre arbítrio, a vontade soberana dos indivíduos, na escolha entre o bem e o mal, tornando os mais primitivas impulsos humanos algo possível e, mesmo, necessário de se negar – cf. Nietzsche, Genealogia da Moral, 2.7. Neste contexto é que se entende melhor o elogio que Nietzsche faz da força e nobreza dos romanos, em contraste com o “ressentiment par excellence” dos judeus, bem como a admiração ainda maior pelos gregos, capazes de enfrentar o aspecto trágico da existência com gratidão e alegria – isso até a disposição da ralé predominar, sob a influência de Sócrates, preparando o caminho para a posterior vitória do cristinanismo (Id., Para além do bem e do mal, 49). E é sob o pano de fundo dessa busca por uma religião que melhor atenda às necessidades naturais e culturais de um povo, que afirma a vida incondicionalmente, fortalecendo sua disposição para enfrentá-la, sem se deixar abater por seus aspectos mais tenebrosos, que se pode entender também a superioridade que Nietzsche indica do Velho sobre o Novo Testamento. Neste “livro da justiça divina” aparecem homens, falas e coisas tão grandiosas que não têm paralelo em qualquer outro da literatura helênica ou védica. É com terror e reverência que nos pomos diante destes registros remanescentes do que uma vez a humanidade foi, antes de se tornar o animal doméstico que viria a ser, sob a influência, principalmente, do cristianismo – que ele tenha aduzido o seu “Novo Testamento” ao “Velho”, formando assim um só livro, a Bíblia, O livro, é tido por Nietzsche como o maior pecado que pesa sobre a consciência européia (cf. Id. ib., 188). A diferença entre os dois “Testamentos”, segundo Nietzsche, é que no antigo se encontra seres humanos heróicos, com a ingenuidade (naïveté) que lhes é própria, algo muito raro de se encontrar, e, mais que isso, ali ele encontra o que considera um povo. E assim sendo, o Novo Testamento fez um grande desserviço para a tradição religiosa e de crença que o precedeu (cf. Id. ib., 3.23). Assim, percebe-se porque, no entendimento de nosso A., algumas religiões podem ser utilizadas para o ensino da liderança. Ele anota que é possível para alguns membros das “classes ascendentes”, alcançar, assim, os patamares da mais alta espiritualidade. E para isso, o ascetismo e o puritanismo são úteis – sobretudo o ascetismo é útil para a filosofia, mas não para filosofar. Ao mesmo tempo, quando aplicado a algumas pessoas, não a todas, ele se mostra não apenas tolerável, mas indispensável para o avanço de um povo, considerando a dificuldade que a maioria das pessoas têm para obedecer a regras (cf. Id. ib, 61) Em suma, a religião mostra-se superior à moralidade moderna sob três aspectos, a saber, (1) o de instruir, por meio da obediência a regras rígidas, as classes superiores, que por sua vez (2) irá elaborar as regras futuras e (3) para ameaçar e punir os que não se submetam às regras. É para este último aspecto, e tão-somente para ele, que o cristianismo se mostra de algum valor e, mesmo assim, outras religiões serriam ainda melhores para tal finalidade, como o budismo. Isso porque a filosofia, em geral, não se adequa às massas, que preferem, a ela, a santidade oferecida pelas religiões (cf. Humano, Demasiado Humano, 115), o “platonismo para o povo”, como ele certa feita caracterizou o cristianismo, com a negação que ambos fizeram do corporal e natural ao ser humano, assim causando o maior mal que já se praticou à humanidade (Crepúsculo dos ídolos, 48). As pessoas em geral não estão interessada na verdade, mas em uma cura (cf. Aurora, 424), a cura do mal de viverem fragilizadas, o que não podiam oferecer os deuses gregos, deuses fortes para os fortes, que preferiam a morte gloriosa do que a duração de uma vida sem o sentido da grandeza. Os gregos antigos também tinham uma concepção diferente do papel da religião. Para Nietzsche, eles não consideravam seus deuses, como os judeus, acima deles como para submetê-los, mas sim como ideais a serem cultivados e modelos a serem seguidos, inclusive em sua organização social estamental – portanto, nada antitéticos a eles (Humano, Demasiado Humano, 114). E é no estado de êxtase dionisíaco que Nietzsche vai apreender a manifestação mais clara da vontade de poder, enquanto vontade de (poder) viver (criativamente) – cf. Crepúsculo dos ídolos, 4 -, mais valorizada do que a vontade de verdade, que em nosso tempo, na conhecida análise heideggeriana de Nietzsche, vai se tornar uma vazia (niilista) “vontade de vontade”. Em “O Nascimento da Tragédia”, como é bem conhecido, Nietzsche opõe a vontade de poder dionisíaca ao princípio apolíneo de ordem, beleza e comedimento, relacionado ao deus-sol, helênico, em tudo oposto ao excesso extático do deus da tragédia e do vinho, asiático. A relação entre ambos não é antitética e, sim, de complementariedade, formando, em seu conjunto, o poderoso impulso artístico, existente na Grécia Antiga, como uma força emanada da natureza, tal como então era entendida, enquanto realidade primordial subjacente às aparências – e se essa aparência era apolínea, o cosmos ordenado, a realidade última era dionisíaca, caótica, avassaladora. Dionisíaco é o reconhecimento e plena aceitação de que há união entre vida e morte, prazer e sofrimento; apolínea é a continência que permite a liberdade pelo respeito às leis (cf. O nascimento da Tragédia, 2) as leis eternas que garantiram o desdobrar-se proporcional das duas forças (cf. Id. ib., 25), até o desequilíbrio causado pelo predomínio do apolíneo desde que se impôs o platonismo – em que o sol representa a verdade e o bem supremo, tal como se vê na célebre “Alegoria da Caverna”, no Livro VI de “A República” - chegando até à modernidade pela via do “monótono-teismo” cristão (O Anticristo, 19). É certo que há de se distinguir, pelo menos, duas “vias”, na história do pensamento teológico-filosófico cristão, pois já na Baixa Idade Média, de uma via antiqua se distinguia a via moderna,que, grosso modo, será consagrada pela denominação, muito genérica, de “nominalismo”, à qual se associa nomes como, além do já referido John Duns Scot, Guilherme de Ockham (aprox. 1280 – 1347). Uma rápida apresentação de aspectos essenciais do pensamento deste último, desenvolvendo pressupostos teológicos lançados por Scot e antecessores, da ordem franciscana, por si só, evidenciará a correção de suspeitas levantadas já na Nietzsche-Forschung, de que nosso A. encontra-se em débito maior com esta corrente, digamos, marginal do pensamento oficial cristão – sobretudo, católico, posto que é, reconhecidamente, uma das fontes principais do protestantismo luterano -, do que ele próprio esteve disposto a admitir ou, mesmo, reconhecer. O pensamento de Ockham orienta-se por três princípios fundamentais: o princípio da onipotência divina, o princípio da não-contradição e o princípio da economia. O primeiro desses princípios, naturalmente, vale apenas para a divindade: Deus é absolutamente livre para fazer o que bem entender – exceto o que for contraditório com o que já tenha feito ou criado anteriormente. Então, o segundo princípio enunciado vincula a própria divindade e, com mais razão ainda, haverá de vincular a humanidade. Já o terceiro princípio, o qual se refere à chamada “navalha de Ockham”, deve ser obedecido apenas por nós, a fim de evitarmos criar conceitos desnecessários para conhecermos a realidade: a Divindade, que é livre para criar tanto os conceitos como a própria realidade a que se referem, sempre poderá multiplicá-los e reinventá-la a seu bel-prazer. Pelo princípio da onipotência divina, tudo provém de Deus, até o que para nós, por uma deficiência nossa, é mal e pecado, pois Ele, ao contrário de nós, não é devedor de ninguém – nullius est debitor: A não ser que Ele mesmo se comprometa com alguém. Em sendo assim, Ele não peca, por não estar obrigado em relação a ninguém a fazer o que é bom e não é pecado - Cf. Ockham, Quodlibeta, III, q. III, in Coleção Os Pensadores, Vol.: “Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham”, São Paulo: Abril Cultural, 2ª ed., 1979, p. 403. A rigor, portanto, Deus nem é moralmente bom nem mal. Nada mais parecido do que este Deus e o “super-homem” nietzscheano... Então, com tanto tempo de predomínio do apolíneo, o futuro só pode pertencer a Dioniso, sendo ele o deus da religião por vir, do que veio a se chamar de “pós-modernidade”. E, de fato, um analista social que adota esta categoria, destaca em suas obras que vivemos já sob o signo de Dioniso - trata-se de Michel Maffesoli, sociólogo francês, bastando referir uma de suas obras que sequer pertence às mais recentes para comprovar, pelo simples título, quanto se vem de afirmar: À sombra de Dioniso. Por uma sociologia da orgia.. Ocorre que, para Nietzsche, se considerarmos seu pensamento, apesar de todas as modulações que atravessa, como fundamentalmente uno, ao que parece, o que nosso tempo, culturalmente doente, demandaria seria mesmo mais da ordem da religião, enquanto filosofia prática, do que de filosofia teorética, pois esta última é avaliada, em um escrito praticamente juvenil (A filosofia na época trágica dos gregos, principio.), como adequada somente aos tempos de cultura saudável, como o dos gregos pré-socráticos (ou, mais precisamente, pré-platônico-aristotélicos), sendo o melhor que ela pode fazer, em uma época decadente como a nossa, é ajudá-la a decair, decaindo – o que nos lembra a famosa passagem no prefácio da “Dialética Negativa”, de Adorno: “Filosofia, que uma vez pareceu estar superada (no sentido de ultrapassada – WSGF), permanece viva, porque o momento de sua realização se perdeu”. (…) “Tal pensamento (o da dialética negativa, bem entendido – WSGF) é solidário com a Metafísica no momento de seu colapso”. Tanto é assim, que aos sucessores dos gregos no projeto imperial alexandrino, com muito mais sucesso, os romanos, não se fez necessário, em termos de filosofia, muito mais do que um ecletismo daquilo que antes produziram os gregos, sendo sua estrutura de poder, jurídico-administrativa, apoiada em sua religião, uma “filosofia da ação”, até o momento que sua decadência, por falta de desafios que impulsionassem a expansão continuada do poder, fez com que adotassem a religião que anunciava o fim dos tempos, mais em um futuro incerto e indefinido: o cristianismo – e aqui estamos, até hoje, com um sumo pontífice romano, a ditar preceitos morais a milhões de ovelhas do seu rebanho, de último, inclusive, cada vez mais absurdos, como a proibição do uso de preservativos e das relações homossexuais, práticas tidas como antinaturais e avessas ao plano da Criação divina. Nos romanos, Nietzsche saúda a grandeza de dizer “Sim” para todas as coisas, o que se torna ainda mais visível no Império, “o grande estilo não mais (apenas) como arte (o que, podemos deduzir, teria ocorrido entre os gregos), mas que se torna realidade, verdade, vida”. “O Anticristo”, §59. É esse dizer “Sim” a tudo, passado e presente, que melhor caracterizaria, segundo Nietzsche, a si e ao seu Zarathustra – cf. Ecce homo, §8. Aqui, para nosso A., os gregos tiveram a precedência, com sua noção de eterno retorno – e, logo, permanência – da vida, apesar de toda mudança aparente, vencida pelo processo vital contínuo de procriação, “pelos mistérios da sexualidade” - Crepúsculo dos ídolos, §4. Já em O nascimento da tragédia, §§16s., aparece esta apreciação do eterno como característica da arte dionisíaca da tragédia, quando o herói é negado e destruído para nosso deleite, mostrando que com isso não é afetado o ciclo vital eterno, pois a beleza triunfa sobre a dor inerente à vida, escamoteando-a, para que a suportemos, enquanto indivíduos, em nome da mudança permanente que sempre traz mais vida, a essência de tudo enquanto vontade, vontade de viver, que perdura mesmo após a morte se manifestar, aparecer, fenomenicamente. Daí a admiração que Nietzsche expressa pela religiosidade dos gregos com a abundância de gratitude (logo, de religiosidade propriamente dita, conforme vimos) no confronto com a vida e a natureza, mesmo em seus aspectos mais terríveis – cf. Para além do bem e do mal, §49. Note-se, portanto, que não se trata de uma afirmação de si nem da recusa a toda e qualquer moralidade, mas sim, de uma afirmação da vida que em nós se manifesta – ou, melhor, que nos manifesta -, a qual seria modelada pelas religiões ao ponto de justificá-la para além de si mesma, freqüentemente negando-a com suas proibições, quando ela mesma já seria digna até mesmo de seu sacrifício, se está for a vontade de quem a possui – ou, melhor, é por ela(s) possuído (aqui, tenha-se presente as observações feitas em A gaia ciência, §§304 e 353). Dioniso é o deus da transformação, da transmutação, do devir, e nisso se opõe predominância do ser, à fascinação pela permanência, que desde Platão exerce sua influência nefasta sobre a cultura que a partir de então se forma, aquela ocidental, cuja culminância se dá na modernidade – mas que até o presente se mostra ainda em plena vigência, como se verifica pela negação da velhice e da morte e, portanto, da própria vida, em sua plenitude, na atualidade. A idéia de ser, de sermos causados por Deus, a Natureza, as Formas ou seja lá o que for que produza a ordem universal, onde temos um destino individual a cumprir, compromete a inocência do devir, aprisiona a vontade em seu livre e permanente desenvolvimento, onde tornamo-nos sempre outro, até voltarmos a ser, novamente, o que já fomos, pelo eterno retorno, no que a idéia de um ser, fixo, em um mundo em constante mutação, pode ao máximo expressar-se - cf., v.g., Humano, demasiado humano, §22; Gaia ciência, §340 e, antes, A filosofia na época trágica dos gregos, §9, em que Heráclito é saudado como o primeiro a perceber que a mudança permanente, em si, não é boa nem má ou injusta, pois é a causa de uma ordem superior, maravilhosa, um mundo perfeito, ao qual só nos cabe dizer “Sim” - O Anticristo, §57. E assim, atinge-se o ápice da reflexão filosófica (e religiosa), em termos dionisíacos, ao estabelecer-se uma relação com a existência na qual ela é amada incondicionalmente: amor fati é a “fórmula” com que Nietzsche caracteriza um tal estado – cf. Humano, demasiado humano, §10; Gaia ciência, §276; O caso Wagner, §4; Nietzsche Contra Wagner, “Epílogo.”. A religião de Nietzsche, então, vai se apresentar como uma religião sem igrejas, sem sacerdotes – para ele, a mais abominável forma de vida -, sem uma vida no além e, mesmo, sem necessidade de divindades, embora elas possa ser reverenciadas e amadas pelo que nelas se manifesta de seus criadores, que as fazem a sua imagem e semelhança – numa inversão perfeita do Livro do Gênese: nós humanos (Para além do bem e do mal, 60).
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